Bem Vindo...

"Há cegos que lêem melhor o livro da vida do que muitos que possuem bons olhos."

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Artigo de José Francisco Caseiro publicado no jornal .


 MARCAS DE UMA VIAGEM - 40 anos depois…  

Tinha sete anos quando pela primeira vez entrei num comboio, acompanhava-me o meu pai e viajávamos para Coimbra. Esta viagem, iniciada no Largo da Praça, não o podendo então adivinhar, viria a mudar por completo toda a minha vida.  
Estávamos em Outubro de 1969 e, por essa ocasião, iniciava o segundo ano de actividades a escola Especial Dr. António de Oliveira Salazar” em Coimbra, mais tarde, com o advento da Revolução de Abril, rebaptizada de Instituto de Cegos de Coimbra.
Um pouco por todo o país, estava a ser divulgada esta nova Escola para crianças cegas e com problemas visuais e, em boa hora, diria hoje, lá chegou a Carapito um edital, apelando a que todas as crianças da freguesia, portadoras de deficiência visual, se matriculassem rapidamente na escola de Coimbra.
Anos depois, soube que essa ideia da minha vinda para Coimbra não caiu lá muito bem no meu meio familiar, sobretudo junto da minha avó Beatriz do Deserto, que, com aquele seu feitio e teimosia, passou a travar grandes discussões com os meus pais sobre esse assunto. Dizia ela que “Deixar levar para um asilo de cegos uma criança de sete anos, era uma crueldade e significava dizer-lhe um adeus para todo o sempre".
No fundo, sem o saber, ela até tinha boas razões para assim pensar e assim agir, pois em boa verdade, nessa altura, apenas existiam três escolas para ensinar crianças com dificuldades visuais, que já praticavam um ensino primário inovador e pedagogicamente avançado, de nível europeu. O resto eram apenas asilos para cegos, para surdos-mudos, etc., tudo estabelecimentos muito fechados e de exclusão social.
 Mas com o decorrer dos anos, sei que ela acabou por ver o seu erro e até compreender que essa tinha sido, de facto, a melhor opção que então se tomou.

Recordo-me vagamente de que ainda passei alguns dias pelos bancos da escola primária de Carapito, mas rapidamente os professores Osório e Ema desistiram da árdua tarefa de me tentar ensinar alguma coisa, pois, nem de longe nem de perto, me era possível acompanhar aquilo que se ia escrevendo no quadro.
Nas férias em Carapito, quando isso era possível, ia até à aula das Adegas, sempre com grande alegria dos professores, realizando com os antigos companheiros todas as tarefas solicitadas, não me tendo saído mal nesses trabalhos escolares, bem pelo contrário, ia bem acostumado.
Não raras vezes, perante o fracasso dalguns, fui tomado como exemplo, atitude que não era do meu agrado, pois no fundo não deixava de sublinhar a verdadeira razão da minha forçada ausência naquela sala de aula.
Mas no fundo, sei que gostava de ali ter ficado diariamente, junto dos meus companheiros de infância. 

E lá chegou então o dia desta viagem, 10 de Outubro de 1969, data que decisivamente parece ter marcado todos os meus passos seguintes.
Avançava o velho comboio, apanhado em Fornos e, para trás, num turbilhão de ideias e pensamentos, iam ficando cada vez mais nítidas essas memórias de infância, por sinal povoadas de agradáveis recordações. Lembrava-me então da família, em particular dos meus avós do Deserto, com quem tinha passado muitas semanas e meses na quinta, dos companheiros com quem brincara diariamente nas ruas, dos campos e suas actividades agrícolas. Do que eu mais gostava era de poder jogar à bola, o que fazíamos diariamente no adro da igreja e no largo do Terreiro. E à noite, pelas Trindades, quem se não lembra, que encanto era ver-se as estrelinhas que saíam da palha-de-aço em chamas pela Praça fora, rodopiando nas mãos dos rapazes mais velhos, enquanto não chegava a hora do “recolher obrigatório”, que então nos era severamente por eles imposto.
Como as coisas eram nesses tempos!
E apesar de tudo, eram bons tempos.

Até esse dia, nunca me havia separado dos meus pais e familiares e jamais tinha pensado que isso pudesse vir a acontecer.
Nem mesmo naquele fatídico dia em que o professor Osório e a D. Ema opinaram aos meus pais que "o seu filho não vê as letras do quadro, mesmo das bancadas da frente e precisa de usar óculos. Tem que fazer as letras muito grandes. Aqui não aprende grande coisa”.
Para os meus pais, a questão de ir ou não à escola, não levantava grandes problemas, pois a instrução primária, segundo a mentalidade desses tempos, não era tida como necessária para quem deveria permanecer e trabalhar nos campos, como tinha aliás sido esse o seu fadário.
Mas mesmo sabendo que não poderia frequentar aquela escola, também não tinha que sair dali, pois tinha o caso da minha tia Emília do Deserto, que sendo cega, nunca tinha abalado da Quinta, isto pensara eu.
Mas na verdade, estava redondamente enganado e viajava agora naquele comboio.
 Por tudo isto, esta viagem para Coimbra, que não se encaixava no meu imaginário mental, assumia assim uma maior importância e um carácter quase simbólico. Paradoxalmente, sou por vezes levado a cogitar se a roda da sorte não terá passado por ali e me tenha então bafejado, pois desta forma fugi ao destino que, indubitavelmente, me estava reservado.

Mas enquanto viajamos em direcção a Coimbra, neste comboio barulhento e que deita fumo por todos os lados, não posso deixar de alinhavar algumas palavras de sincero apreço e de agradecimento ao meu Amigo Padre Silvério Cardoso, que ao tempo tratou da papelada exigida, tendo, para esse efeito, ido várias vezes à cidade da Guarda, nos piores rigores invernais, com muito frio e neve, ainda na sua velha lambreta, creio que azul, mas isto só o vim a saber por ele próprio muitos anos depois.
Outro amigo devo também aqui mencionar, pelo seu incondicional apoio em todo este processo e, sobretudo pelas agradáveis visitas que me fazia ao colégio em Coimbra: o senhor Carlos Baltasar.
Mas todos para mim foram importantes, não podendo esquecer igualmente o apoio dos meus padrinhos José e Prazeres, pelo que, do fundo do coração e de modo igual, a todos quero agradecer por terem dado um outro rumo à minha vida, ainda que o faça agora e publicamente, quarenta anos depois…

Mas finalmente lá chegámos ao colégio que a direcção indicava, que ficava no Bairro do Loreto.
Era uma escola grande e cheia de vistosos jardins, que alguém se encarregou rapidamente de me tentar mostrar, com muitas árvores, bancos espalhados por todo o lado e mesmo um campo para jogar à bola. Mas eu, ainda espantado, naquela hora não queria saber nada daquilo. Toda a minha atenção ia exclusivamente para o meu pai, não se fosse ele embora e me abandonasse ali, no meio de tanta gente estranha e que de todo desconhecia. Mas ele, depois dalgum esforço, lá se conseguiu escapulir, deixando-me em grande pranto, com o coração amargurado nos meus sete anos.
Mas o tempo tudo cura e lá me fui acostumando à minha nova vida, aos meus novos amigos, aos professores e também à cidade de Coimbra.
 No fundo, até acabei por gostar imenso de ali viver e estudar. Era uma boa escola, com bons professores, bem equipada, com excelente organização e estruturação curricular. Era na altura considerada, isto nos anos 70, a terceira melhor escola de "ensino especial" da Europa.
Recordo-me de que um dia, até o Tó-Zé Paixão, com os seus colegas estudantes do Magistério Primário, para verem como aquilo funcionava bem, por lá passou também.
E ao cabo de seis anos, lá tive que abandonar essa que foi a minha primeira escola, com um diploma da 4ª classe debaixo do braço e um misto de sonhos e de esperanças, rumo ao então chamado “Ensino Integrado”.
Ainda acontece que hoje, passados quarenta anos da minha primeira entrada nessa Escola, é muita a emoção e são profundos os sentimentos que me invadem quando por ali entro, pois penso terem sido ali vividos os mais felizes momentos e anos da minha infância.

Em 1975, fui então parar à Comunidade Juvenil de Bencanta, um Lar de crianças e jovens filhos de emigrantes, Instituição que a irmã Teresa Granado sabiamente dirigia, e que ainda hoje funciona sob a sua direcção em Eiras – Coimbra.  
Nesses tempos, em que a entrada de crianças e jovens com deficiência nas escolas portuguesas não passava ainda de uma quimera, ela foi a única pessoa que, com grande humanismo e ousadia, em toda a cidade de Coimbra, aceitou receber na sua instituição crianças cegas e com visão reduzida, de forma a poderem frequentar o ensino normal, junto das demais crianças e jovens.
Na Comunidade da Irmã Teresa, onde estive 17 anos, também correu sempre tudo com grande normalidade. Praticamente éramos uma grande família, onde a solidariedade imperava. Desde muito cedo nos foi por ela ensinado de que “a liberdade exige responsabilidade”, pelo que Foi esse o lema e filosofia de vida que acabei por adoptar e me possibilitou ir sempre mais longe, crescendo para a vida e na minha formação cívica e académica.

Mas nem tudo era um mar de rosas e, a meio do curso liceal, surgiu um inesperado revés na minha vida, que inevitavelmente também deixou as suas marcas. Com o agravar do meu problema oftalmológico, vim a perder totalmente a visão quando frequentava o 9º ano. Foi, de facto, um período para mim algo complicado e que psicologicamente me arrasou.
Mas ainda era possível aos dezoito anos “sair da crise”, o que consegui fazer com muita motivação e forças que encontrei dentro de mim.
Era agora problemático ver-me na pele de pessoa cega, ter que usar uma bengala na rua e passar a ler e escrever apenas em  braille, estar mais dependente de terceiros, deixar de  ver televisão ou mesmo de ler livros em tinta(que tanto adorava fazer), etc..
Era um mundo novo, que teria lentamente de desbravar, para conseguir fugir à força avassaladora da escuridão e das trevas, onde milhões de outros seres humanos haviam já submergido.
 Havia experiências e situações que para mim eram novas e às quais tive que passar a dar mais atenção: aos sons, aos odores, aos relevos, às vozes das pessoas, etc.. tudo aspectos que ajudam as pessoas cegas a orientarem-se e a fazer a sua vida normal.
E, quando dei conta, com tanta confusão, lá se tinha ido esse 9º ano por águas abaixo.
Mas quantos não chumbaram uma vez na vida!?... e eu, desta vez até tinha uma boa desculpa!
Mas a vida continuava e eu queria vivê-la.

Realizando mais um sonho, em 1984 entrei para  a Universidade de Coimbra, que até posso considerar ter sido a minha quarta escola, onde cursei História, licenciatura que terminei quatro anos depois.
 Aqui sim, encontrei muitos obstáculos, pois a Universidade ainda não estava preparada para receber alunos com qualquer tipo de deficiência (ainda hoje muitas não o estão), pelo que foram necessários muitos esforços para ultrapassar as adversidades, como por exemplo a falta de livros em Braille ou gravação, de equipamentos (que jeito me teria então dado um dos meus computadores), etc., lacunas que a solidariedade dos colegas acabava por compensar.
Não posso, no entanto,  deixar de salientar pela positiva as muitas actividades académicas onde me vi  envolvido, desde “Queimas das Fitas” à luta estudantil, que então se vivia em Coimbra.
Bons foram, seguramente, esses tempos da Universidade!...
E concordando com a bela canção coimbrã:  “Coimbra tem mais encanto na hora da despedida…”.

Rumei então para a Escola Secundária José Falcão, onde entretanto tinha sido colocado como professor de História. Talvez tenha sido esse um dos momentos mais marcantes e de maior júbilo pessoal, pois representava o fim duma longa caminhada, iniciada em Carapito nessa fria manhã de 10 de Outubro de 69. Era também a autonomia e a independência financeira, conquistas que igualmente devo partilhar com alguns amigos e familiares mais próximos.
Foi, seguramente, a maior alegria que então pude dar aos meus familiares, sobretudo ao meu pai que, já um pouco combalido pela doença, sei que ainda viu esse seu desejo e sonho realizado.

Não me posso agora esquecer de recuar alguns anos, para justamente assinalar outro momento importante, que ocorreu a meio da década de 80, era ainda estudante na Universidade, quando conseguimos, com o empenhamento do Quim Lopes, do Pedro Alves e do Tó Feio, tendo vindo depois muitos outros, criar em Agosto de 1986 em Carapito a Rádio Monte-Calvário, que se manteria no ar cerca de três anos, com aquele êxito estrondoso que todos conhecemos, tendo sido a primeira no concelho e a terceira rádio privada a nascer no distrito da Guarda.
Foi, verdadeiramente, um momento único na nossa história local, que ficará seguramente gravado nos corações das gentes da Serra do Pisco.
Recordam-se do lema: “RMC - A Rádio mais no meio do campo!”?

Passei entretanto na década de 90 pela presidência da direcção da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO/Centro), Instituição a quem dediquei cerca de doze anos da minha vida, trabalhando voluntariamente e tudo procurando fazer para o bem-estar dos milhares de cidadãos deficientes visuais residentes na Região Centro.

E esta narrativa (que quase faz lembrar a outra do Raul Solnado) já vai longa e pouco mais tem de interesse. Apareceu a Idalina e constituímos mais uma família.
Do nosso casamento nasceram dois rapazes, Pedro e André, que tornam hoje as nossas vidas e o nosso lar muito feliz.
E quanto ao futuro, como diz o nosso povo “a Deus pertence”.

Para terminar, ao completar-se este mês  o 40º aniversário da minha saída de Carapito, não pretendendo com isto ser tomado como exemplo de nada nem de ninguém, sempre gostava de dizer aos jovens de Carapito, muitos dos quais mal me conhecem, muito menos toda esta história que vos relatei e, que se confrontam na actualidade com constrangimentos vários e imaginam que a vida já não os obsequiará com um futuro mais auspicioso, para não desistirem nunca de lutar; perante o esmorecimento não devem baixar os braços, pois acreditem que haverá sempre uma esperança e uma segunda oportunidade para se ser feliz e seguir em frente.
 Nada nesta vida se consegue sem trabalho e sem esforço, sem fé e sem esperança num amanhã, que todos desejamos muito melhor.
Reparem que tudo começou com uma simples viagem, que contribuiu para a mudança por completo da minha vida e me deu a oportunidade de ser o homem que hoje sou.
E se aí tivesse permanecido?
Às vezes a vida é-nos madrasta e temos que tomar opções, mas é preciso que as tomemos com cuidado mas com audácia.

Aprendi ainda que, apesar das nossas diferenças, mais aparentes do que reais,  todos somos úteis e necessários à construção duma sociedade mais fraterna e solidária, onde não haja lugar ao individualismo e às injustiças.
Se quisermos, todos saberemos colaborar na construção desse Carapito mais fraterno e solidário, sem mesmo ser preciso “abalar de comboio!”.
Por mim, já estou a fazer essa viagem do “regresso às origens!”.
Podereis acompanhar-me nessa longa caminhada, seguindo pela estrada virtual:
Todos juntos, de mãos dadas,  faremos essa longa viagem rumo ao porvir.
O caminho, faz-se caminhando, sempre… sempre, sempre… 


Coimbra, Outubro de 2009

(José Francisco Marques Caseiro)


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