Bem Vindo...

"Há cegos que lêem melhor o livro da vida do que muitos que possuem bons olhos."

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Entrevista ao cego José Francisco Caseiro


1. Há quanto tempo é cego?
R.: Posso dizer-vos que sou totalmente cego há 30 anos, isto é, desde 1980, altura em que, devido ao agravamento do meu problema oftalmológico de Glaucoma, deixei definitivamente de ver.
Até aí, era um jovem amblíope, isto é, tinha o que hoje designamos por Baixa Visão, que me permitia fazer uma vida quase normal: ler, escrever, ver televisão relativamente perto do ecrã, deslocar-me sem qualquer ajuda ou bengala na rua, conhecer as pessoas pela sua fisionomia, etc.

2. Qual a causa da sua cegueira?
R.: Não se sabe. Já nasci com Glaucoma congénito, que se foi agravando com o decorrer dos anos, tendo ficado cego, como disse, aos 18 anos.
Na família apenas tinha uma tia com este problema, sendo que as minhas irmãs e os meus filhos nada têm em termos de problemas visuais.
Portanto, não se pôde apurar uma verdadeira causa, embora o factor hereditário possa ter tido alguma influência.

3. Se já nasceu com essa deficiência visual, como foi a adaptação dos seus pais e da sua família a um novo modo de vida?
R.: No início foi para eles uma situação complicada e deveras difícil, pois nem todos encararam a questão da minha deficiência da mesma forma.
Mas o facto de já haver uma pessoa cega na família (tia materna), pode ter dalgum modo atenuado o sofrimento dos meus pais.
 Quando fiz sete anos, ainda fui uns dias à escola primária da aldeia onde residia, no interior do país, mas houve dificuldades da parte dos professores em lidar com o meu caso e não tive êxito nesse início escolar.
Os professores não estavam preparados para lidar com crianças diferentes, que apresentassem problemas físicos ou outros.
Foi então que surgiu através do Padre da aldeia o aviso da abertura de uma escola de Ensino Especial em Coimbra, para crianças cegas e com baixa visão, oportunidade que os meus pais e familiares não deixaram fugir.
A minha avó era contra a minha vinda para Coimbra, pois a sua filha (minha tia cega) também não havia estudado e ficara sempre em casa, tratando da vida doméstica, pelo que o seu modo de perspectivar o problema era exactamente o mesmo.
Mas a tese da vinda para Coimbra venceu e, depois das formalidades da inscrição, cá vim parar a esta cidade, onde estudei, trabalho e resido.
Foi aqui que, desde muito cedo, me preparei para enfrentar as dificuldades da vida.

Creio que depois da vinda para Coimbra tudo normalizou, pois a minha avó reconheceu que tinha sido bem melhor este desfecho, pois estava a preparar-me para a vida, estudando e adquirindo a minha própria personalidade.
Sei que entretanto muitas outras pessoas não tiveram esta sorte e ficaram retidas em casa, sem poder estudar nem adquirir qualquer formação.

4. Já tinha precedentes na família, com o mesmo tipo de deficiência?
R.: Sim, tinha uma tia materna que tinha também Glaucoma, que a cegara quando ainda era muito jovem.

5. Nas escolas que frequentou, havia tecnologias e equipamentos adequados à falta de visão?
R.: Na primeira escola especial de Coimbra – Instituto de Cegos de Coimbra –, posso dizer que sim, havia todos os materiais que altura se usavam no processo de ensino-aprendizagem de crianças com problemas visuais, desde livros adaptados, Braille e ampliação, máquinas de escrever Braille e tinta, jogos didácticos e lúdicos, materiais para ensino de música, equipamentos desportivos, biblioteca, etc., pelo que a formação era boa e de grande qualidade.
Essa escola de Ensino Especial chegou na década de 70 a ser considerada a 3ª melhor da Europa no ensino de crianças com deficiência visual.
Com a entrada no Ciclo Preparatório, já no ensino normal (actuais 5º e 6º anos), começaram a aparecer dificuldades: havia professores com menor formação, falta de materiais, falta de equipamentos desportivos, etc., pois as escolas não estavam preparadas para receber este tipo de alunos.
No Ensino Secundário (7º ao 12º anos), o panorama era idêntico: havia bastantes alunos, dispersos por muitas escolas e poucos professores para prestar apoio, para além das carências ao nível dos livros e outros materiais escolares.
Apenas nas grandes cidades se concentravam os alunos numa ou duas escolas, para se gerir melhor esses recursos disponíveis.
Por último, na Universidade então o apoio era zero. Na década de 80 ainda Não havia nada.
Cada aluno apenas podia contar consigo e com a solidariedade de colegas e de professores, que faziam o que podiam para haver sucesso.
Ao nível institucional, não havia quaisquer serviços de apoio.

6. Alguma vez sentiu dificuldades na aprendizagem?
R.: Sim, muitas vezes, não pela dificuldade em apreender ou assimilar conhecimentos, mas pela falta de meios para fazer essa aprendizagem. Sem ter muitas vezes todos os livros em Braille e outros instrumentos de trabalho, tornava-se difícil acompanhar os meus colegas nas aulas, i isso era um forte condicionalismo que me poderia ter desmotivado relativamente ao prosseguimento dos estudos, como aconteceu com outros alunos com deficiência visual.
Felizmente que as coisas hoje são bem diferentes e os alunos têm praticamente os materiais e equipamentos de que precisam, para além de professores com formação.

7. Sentia-se integrado no círculo de amigos da sua escola ou sentia-se "inferior" em relação aos seus colegas por ser diferente?
R.: Sempre me senti integrado no ambiente escolar, quer no Ciclo Preparatório, quer no Ensino Secundário e mesmo na Universidade.
Mas isso nem sempre acontece. É preciso estarmos disponíveis, abertos para os outros, assumirmos a nossa diferença e querermos fazer essa integração, para que os outros nos aceitem tal como somos.
Como sou de fácil relacionamento, sempre tive grupos de amigos/colegas com os quais convivia e participava em todas as actividades, dentro e fora da escola.
Tinha a vantagem de viver numa Instituição de jovens, o que facilitava muito as coisas.
Ainda hoje tenho muitos amigos desses tempos de estudante, com os quais gosto de estar e recordar esses bons momentos.
Depende muito da pessoa com deficiência, visual ou outra, o ser capaz ou não, de dar esse passo no sentido da integração, pelo que pela minha parte tentei sempre pugnar por caminhar no sentido dessa inclusão, chegando mesmo a ocupar lugares de destaque em associações de estudantes, comissões de curso na Universidade, etc.

8. Chegou a frequentar alguma universidade ou instituto de curso superior?
R.: Frequentei a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo-me licenciado em História.

9. Era possível encontrar em sua casa todos os equipamentos adequados à sua deficiência?
R.: Não. Apenas tenho em casa aqueles que me interessam e posso adquirir, pois existem muitos outros que, por serem caros, não posso ter. Mas basicamente existe tudo aquilo de que necessito para o dia-a-dia, enquanto pessoa com deficiência visual.
A casa de uma pessoa cega, ou mesmo de duas, dado que a minha esposa também é cega, não é muito diferente da casa de pessoas com visão normal, pois usamos basicamente os mesmos equipamentos, embora alguns tenham algumas adaptações. O mais importante é a arrumação e disposição das peças de mobiliário e objectos, cada qual no seu lugar, para sabermos sempre onde se encontram.

10. Há quanto tempo e onde aprendeu a utilizar o Braille?
R.: Aprendi Braille logo na primeira escola especial para cegos, mesmo não tendo ainda necessidade de o utilizar. Nessa altura, era norma nas escolas de Ensino Especial todos aprenderem Braille, cegos e pessoas com baixa visão, para poderem estar devidamente preparados para as contingências do futuro.
No entanto, quando ceguei aos 18 anos, como não era um utilizador assíduo, tive mesmo que me agarrar ao Braille, com todas as forças e ambas as mãos, para poder continuar a estudar. Nessa fase por dominar mal o Braille, ler e escrever muito lentamente, acabei por “chumbar” nesse 9º ano, situação que até me veio posteriormente a favorecer, pois a frequência pela segunda vez trouxe-me melhores notas e mais motivação, para além de novos colegas e amigos.
Assim, considero que ainda hoje o Braille é fundamental no ensino-aprendizagem de crianças e jovens com deficiência visual, pois ele é o seu natural e lógico suporte de escrita e leitura, isto apesar de todas as tecnologias hoje disponíveis, que dalgum modo afastam os alunos cegos da utilização regular do Sistema Braille.

11. Tem filhos e/ou casou? Se sim, sentiu dificuldade em nunca os poder ver, de não saber como são, isto é, só o pode "ver" com as mãos?
R.: Sim casei, por acaso com uma pessoa também cega.
Temos dois filhos, sem problemas visuais e somos felizes.
De facto eu conheço-os, detecto-os, vejo-os com as minhas mãos e sei como agir com eles em cada momento, mesmo quando eles não pensam que os estou a observar (à minha maneira).
Conheço a sua maneira de ser e pensamento e consigo prever com alguma exactidão o que irão fazer ou dizer em seguida.
Estou em vantagem relativamente a algumas pessoas cegas, pois como já vi, guardo as imagens de rostos, da cor dos cabelos, do perfil das pessoas, pelo que facilmente transporto essas imagens para as pessoas dos meus filhos, traçando com imaginação o perfil de cada um deles.
E eles também nos conhecem muito bem, sabem das nossas potencialidades e conhecem as nossas limitações, pelo que também estão sempre atentos e conseguem prever algumas situações em contextos variados.
Portanto, o mais importante não é o que se vê ou consegue ver com os olhos, pois o essencial está dentro de cada um deles e também de cada um de nós.

12. Disse-nos que praticava desporto quando era mais novo. Praticava-o só com colegas cegos?
R.: Durante a escolaridade praticava desporto com os colegas da turma e/ou com outros amigos sem problemas visuais.
Era possível fazer ginástica, praticar atletismo com um guia ao meu lado, natação em grupo, etc.
Mais tarde, já na Universidade, pratiquei desporto com atletas cegos, designadamente:
-  Atletismo, com um guia;
-  Goalball, integrado na equipa da ACAPO/Coimbra, participando em competições regionais/nacionais;
- Futebol para cegos, integrando a equipa de Coimbra da ACAPO, em Campeonatos nacionais da modalidade;
- Ciclismo-Tandem, competindo pela ACAPO ou individualmente em provas e torneios da especialidade.
Existem ainda outros desportos, os chamados desportos de mesa ou tabuleiro, como Cartas, Bingo Sonoro, Damas, Dominó ou Xadrez, dos quais nunca fui grande praticante, por serem demasiado estáticos para o meu gosto.

13. As pessoas com deficiência visual têm muita dificuldade em arranjar emprego, visto que há muita falta de sensibilidade por parte de quem é responsável pelo ofício. Comente a afirmação consoante o seu modelo de vida.
R.: Efectivamente, nos tempos que correm, mas também no passado, as pessoas com qualquer deficiência têm grande dificuldade em encontrar um emprego compatível.
Não é só um problema estrutural, próprio da crise que atravessamos, mas também e fundamentalmente é um problema de mentalidades e de confiança nas capacidades e potencialidades destas pessoas.
Como não se conhece ou não se sabe do que são capazes de fazer, não se lhes dá as oportunidades que merecem e a que têm direito.
Mas muitas vezes as dificuldades têm origem nos próprios deficientes que, perante um mais reduzido leque de ofertas de trabalho, não estão tecnicamente preparados para competir e enfrentar esse difícil mundo laboral, onde a competição entre trabalhadores está na ordem do dia.
Em suma, as dificuldades para hoje se encontrar um emprego são grandes para todos, mas substancialmente maiores para os cidadãos com deficiência.

14. Porque razão decidiu alistar-se na Direcção Regional?
R.: Eu era professor numa escola de Coimbra e, em dado momento, era preciso alguém que assegurasse a revisão de manuais e outros materiais produzidos em Braille na DREC, pelo que fui convidado para desempenhar essas funções, o que fiz durante cerca de 10 anos. Actualmente exerço funções de apoio no Gabinete de Educação Especial, com tarefas várias.


Coimbra, 25 de Novembro de 2010

José Francisco Caseiro


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